terça-feira, novembro 06, 2012

Mudança social


                     Curioso tentarmos encontrar respostas e caminhos para uma mudança social.  Se nem mesmo o homem, sujeito repleto de subjetividades, poderia dar conta de certezas que o leve a destinos vislumbrados num projeto de futuro, como poderíamos pensar em transformações para um conjunto deles? Mulheres e homens compõem inúmeras realidades compartilhadas em sociedade e cada qual possivelmente as enxerga de uma maneira, pois o sujeito é histórico, cultural e social, fruto de uma produção discursiva que constrói socialmente, contudo é também reflexo de suas escolhas e ações particulares frente a esse social. Não há como qualquer individuo ser igual ao outro. Assim, supomos encontrar a resposta, pois é através do outro que nos entendemos e significamos. A mudança não é possível quando pensamos e a objetivamos em alguém sozinho, é sempre na relação com outrem que podemos mudar.
                        Por que às vezes temos a idéia de que vivemos no caos? O aumento da violência urbana, o abandono da educação, o esquecimento da cidadania, o distanciamento entre pais e filhos, entre pares e amigos, a apatia com o sofrimento alheio, a banalização do mal, a desestruturação das auto-estimas, a perda de caráter, o relativismo da gentileza, a performática da vida, a procura por corpos ideais, etc. Tudo isso parece alinhar-se uma lógica de busca por uma juventude que nos valha de anestésico para a morte, quando, talvez, não acreditemos mais na vida. É como Jurandir Freire Costa fala ao tratar da indiferença, em que nos esquivamos de olhar para o outro, certamente acabamos por destruir aquilo que não temos coragem de transformar.  
            Loïc Wacquant diz que o distanciamento cada vez maior entre os sujeitos ricos e pobres, bem como o crescente autocercamento das elites políticas, o afastamento das instituições dominantes da sociedade, tudo isso alimenta a hostilidade e a desconfiança, legitimando a ordem social, a autoridade e a repressão: a polícia.  E o controle é a peça-chave para entendermos a estabilidade e manutenção das coisas. Opressão, poder e competitividade estão em jogo numa sociedade que não se questiona e não se enxerga. A mudança nesse contexto parece limitada.
            Para Jurandir a nova sociedade global se tornou personagem de um mundo fantasma, vivemos num lugar que é internacional e, ao mesmo tempo, fictício. E sem as raízes e pertencimento, perdemos o sentido da história e do bem comum. No Brasil e em muitas partes do globo, as classes dirigentes ignoram os desfavorecidos, eis a primeira indiferença, que por sua vez pouco se importam com a vida das elites, segunda indiferença. Em meio a isso, a burguesia é acometida pela ansiedade, insegurança e sentimento de fracasso. Eleva-se o consumo de antidepressivos, as consultas terapêuticas, os shopping centers, a busca por respostas exotéricas, os gastos com produtos e serviços que prometem a felicidade, essa é a terceira indiferença, das elites para com elas mesmas.  É a incapacidade do olhar para outra coisa que não seja a si mesmo. O outro se perdeu nessa lógica da indiferença e quando não temos o outro não significamos a nós mesmos. Logo, não podemos mudar o que foge a nossa visão.
            Wacquant acredita que houve uma modernização da miséria, um novo regime de desigualdade e marginalidade urbana que trilha novos rumos e toma outras formas. Qualquer que fosse o rótulo utilizado para designar os marginalizados, ao que nos parece, estes não estão mais isolados num território, etnia, raça, sexualidade. A marginalidade apresenta outros sinais somado aos antigos, está em toda a cidade, em todos os grupos e tribos. Frei Betto coloca que hoje, pior do que antigamente, na sociedade em que vigora o individualismo, não mais falamos em marginalizados, e sim em excluídos. Não há mais a esperança de retorno, os sujeitos nem contornam o esperado, o modelo, estão postos para fora, no lugar da ausência. São invisibilizados na realidade.
                        Diante disso outras questões nos aparecem. O que está implícito nessas ações humanas? Como constituímos nosso projeto de futuro para vivermos em civilização? Quais são as possibilidades de ruptura nesse contexto? Será que é preciso mudar? Estamos satisfeitos com o que temos construídos como humanidade? Se a racionalidade é parte do que concebemos sobre nós mesmos, tais questionamentos já se legitimam como uma pulsão do nosso existir. Esbocemos possíveis respostas para tanto.
                        Diversos pensadores e intelectuais defendem que somos dominados e agimos pelos desejos. Nossa mecânica configura-se através das pulsões por aquilo que almejamos. E se somos seres sociais, certamente nossos desejos serão construções do social, produtos das diversas histórias, culturas e ideologias. Assim, vivemos num processo em que buscamos objetivar tais anseios. As relações entre indivíduo e o outro/cultura/mundo se dão nessa interação complexa em que todos se constituem mutuamente. Jose Leon Crochik, numa perspectiva da psicanálise, mostra como a constituição da personalidade dos sujeitos em relação com a cultura produz preconceitos e estereótipos, ou seja, significações do mundo. É como se uma economia reflexiva legitimasse a idéia que temos das coisas como verdades que atendam nossas expectativas. Jurandir Freire Costa fala de nossa devoção pelas palavras, as quais supomos serem verdades daquilo que pretendem designar. Ainda que os seres humanos se orientem pelo outro, pela cultura que o atravessa, sua pulsão de vida e morte advém de si. Para Crochik o preconceito é uma reação à mudança individual e social, é a eliminação do desconhecido e afirmação do conhecido. Voltemos à impressão de vivermos no caos, o homem que busca a estabilidade e a segurança, quando confrontado com as incertezas, certamente recorrerá ao que está cristalizado, posto de certa forma como verdade. É o que lhe confortará. Como, por exemplo, quando diante de uma explosão e visibilidade de múltiplas manifestações de sexualidades, e da relativização de temas como gênero e orientação sexual, muitos setores da sociedade firmam-se no fundamentalismo religioso. Nossas práticas decorrem sempre desse movimento entre o eu e o outro, numa busca de construção de si.
                        Assim, é nesse interstício sujeito/mundo que vislumbramos a possibilidade de ruptura. Precisamos considerar essa economia reflexiva e tentarmos transpô-la com idéias e propostas de vida novas. A academia sozinha certamente não daria conta de responder tais expectativas, contudo, como todos os múltiplos micro-espaços de atuação do sujeito, ela é capaz de propor ensaios para colocarmos em cena. A desconstrução proposta pela teoria queer advém dessa perspectiva. Não se trata de um relativismo raso, mas de um constante questionamento sobre a significação, classificação, categorização, disciplinarização das coisas.
                        Já nos está claro que não há como mudar alguém sem que seu entorno se transforme, contudo, também não é possível alterar uma conjuntura sem que mudemos cada um de nós. A resposta que nos parece óbvia, confunde-se com sua inexistência.  A meu ver, mudar é preciso, independente da nossa satisfação enquanto humanidade, pois esta associa-se a uma percepção que é subjetiva. Mudar é necessário, pois segue a lógica de perseguirmos algo, de sonharmos, de querermos a vida e não a morte. Mudar nos parece tão distante porque, paradoxalmente, a mudança se inscreve no presente e no cotidiano, que de tão próximos, não encontramos lugar para essa transformação que projetamos no futuro.