quarta-feira, outubro 22, 2014

31ª Bienal de Arte de São Paulo: blasfêmia?

“Como (falar, ouvir, etc.) coisas que não existem”

Blasfêmia, palavras que ultrajam a divindade, seria o qualitativo mais adequando para definir a 31ª Bienal de Artes da capital paulista? Sim, Blasfêmia! Não pela afronta, mas porque é preciso contestar a divindade. É preciso que nos questionemos como simbolicamente a cultura atravessa os corpos, mentes, crenças, espaços e tudo aquilo que nomeamos e significamos socialmente, inclusive, ironicamente, o lugar que empresta o nome ao evento.
A edição de 2014 do evento foi classificada “blasfêmia” pelo Instituto Plínio Correa de Oliveira. Contudo, à revelia do instituto cristão e outras entidades, representantes da ordem e das instituições de poder, ainda que traga uma interpretação subjetiva, a crítica da bienal de arte, travestida em símbolos gráficos, estéticos, sonoros e etc., foi proposital. Óbvio!
Nas diversas obras e exposições podemos ter uma aula de como construímos a cultura e vários elementos que a constitui, como as práticas sociais, a linguagem, as línguas e expressões, faladas e escritas, tradições de organização social, codificadas em temas como violência, sexualidade, religião, uso dos corpos e poder.
 A 31ª Bienal de Arte de São Paulo é contemporânea, como prevê sua proposta, e histórica por tudo que resgata de nossas feridas do processo civilizatório, recalcadas a base de um projeto de vida e poder que nos controla e nos faz perder do todo, limitados a um único foco de atenção: nós mesmos. Esquecemos o tempo e a história, pois não suportamos lidar com o que mais nos toca, o outro. 
Sendo assim, contestar a divindade é provocarmo-nos, é relativizar nossas certezas. Tarefa árdua à quem está acostumado e condicionado ao "amém" e "sim, senhor". Essa provocação é, talvez, uma das poucas formas que podemos romper com a arrogância e prepotência de nos acharmos conhecedores de todas as coisas e realidades. É deixar o cabresto e as rédeas, e, sobretudo, a tutela de nossas vidas. É o compromisso, a responsabilidade e maturidade em fazer frente ao mundo e o que ele tem a oferecer. Assim, blasfêmia é possibilidade de mudança, uma vez que provoca, mexe e nos coloca em cheque.  E já afirmava Aristóteles na antiguidade: o pensamento nasce do espanto.

 “O título da 31ª Bienal de São Paulo – Como (…) coisas que não existem – é uma invocação poética do potencial da arte e de sua capacidade de agir e intervir em locais e comunidades onde ela se manifesta. O leque de possibilidades para essa ação e intervenção está aberto – uma abertura que é a razão da constante alteração do primeiro dos dois verbos no título, antecipando as ações que poderiam tornar presentes as coisas que não existem. Começamos por falar sobre elas, para em seguida viver com elas, e então usar, mas também lutar por e aprender com essas coisas, em uma lista sem fim”. – 31ª Bienal de São Paulo

quinta-feira, outubro 16, 2014

Para quem contamos a história? Texto de Ingrid Soares para o menino João Donati

Texto de Ingrid Soares, compartilhado no II Encontro de Contadores de História - Ciranda, do Senac SP. 

"Ô, meu menino, vem cá.
Deixa eu limpar o teu corpo. Cospe longe esse papel cheio de ódio que te enfiaram na boca. Tua boca é pra beijar, pra sorrir, pra falar de amor.
Ei, vamos cuidar dessas pernas, que desse jeito, você não vai correr mundo. E o mundo é pra correr.
Vem cá, João, se afasta dessa gente que tem medo de liberdade.
Fica aqui, fica do meu lado que eu te protejo.
Pode ser, pode ser à vontade que você tem vontade de ser.
Desculpa por toda essa confusão, é que nessa mania que a gente tem de se levar a sério, um monte de gente saiu por aí pregando certezas e erradezas da vida. E a gente tão pequeno. E a gente tão mesquinho. E a gente se afastando de tudo o que realmente é importante.
Ai, que dor. Essa impotência sangra muito, menino, fragmenta os ossos, diminui.
Queria ter voz firme pra proclamar a alforria, pra mandar te deixarem solto, livre, bonito, em paz.
Mas eu nada.
Vou rezar uma ladainha e mastigar o conformismo.
Vou cantar baixinho pra ver se a tristeza se desinteressa de mim.
Vou falar de você. Vou levantar uma bandeira com o teu nome nas praças.
Veja só, meu pequeno, tem gente na tv dizendo que o que te fizeram tá é correto.
Que loucura essa tv, que loucura esse mundo.
Espero que no seu novo lugar, as coisas sejam diferentes, tá? Espero que nem haja tv. Espero que você possa amar. E ser. Eu acredito, é o que me resta.
Afetuosamente,
Eu.
(A João Donati, brutalmente assassinado aos 18 anos, por sentir atração sexual e afetiva por homens.
A João Donati, que poderia ser – e, de certa forma, é – meu filho.)"

quinta-feira, setembro 25, 2014

A morte de Sócrates na contemporaneidade

            Um dos grandes filósofos da antiguidade, Sócrates (469-399 a.C.), acreditava, em linhas gerais, que a filosofia não ensinava nada, mas ajudava o sujeito encontrar a verdade por si mesmo. “Sei que nada sei” é a máxima que rompe com nossa arrogância em acreditar que o que dizemos é o que realmente é. Suponho que se Sócrates estivesse no atual cenário certamente beberia a cicuta, veneno que o matou na antiguidade.
            Transitando por três tipos de instituição de ensino, uma pública, outra privada e a terceira do sistema S., percebo que, para além das diferenças e particularidades de cada uma delas, quando falamos de uma racionalidade operante das práticas sociais, o mesmo modelo se impõe em todas elas. Numa faço mestrado, noutra minha segunda graduação e na terceira atuo como educador.
            Apesar de considerar todas aquelas constatações que já sabemos no senso comum, de como estruturalmente essas instituições constituem suas comunidades, atravessadas por uma lógica de classe, privilégios e formas de dominação, quando legitimamos as autoridades nos espaços de educação; penso que temos um desafio: estabelecer um diálogo entre “papagaios burros”, termo que empresto do prof. Fábio Camilo Biscalchin e sugiro a leitura de sua obra.
            Na sociedade contemporânea do imediato, baseada no espetáculo e na performance, não há espaço para a reflexão, não é mesmo, caro leitor? Quantos de nós, concomitantemente à leitura de uma matéria nas redes sociais e mídias eletrônicas, já colocamos nossa opinião? Todos querem ter a verdade e compartilhá-la. E já dizia outro filósofo, mais contemporâneo, Foucault (1926-1984), que o poder está em todas as pessoas e relações.
            Não é que essa moção pelo compartilhamento de ideias não seja importante, tão pouco que todos possam apresentar seu posicionamento, afinal a democratização do conhecimento e da participação é um princípio ético para a vida em sociedade. O problema é quando nos esquecemos que é preciso pensar.
            Infelizmente, nessas instituições de ensino vejo esse paradoxo: uma repulsa ao pensamento, quando o objetivo é a formação. Assim, naquelas escolas de ensino que denominamos “superior” queremos a crítica pronta e o método que legitime a nossa verdade e produzimos saberes como sapatos, já em outras observamos o consumo do conhecimento, quando em toda aula prima-se pelo espetáculo e platéias contagiadas e noutra acolhemos sujeitos que, numa formação técnica, buscam práticas e procedimentos que os transformam em máquinas, peças sem subjetividades, sem valor moral e humanidade.

            Retomemos Sócrates, pois é preciso uma vida com pensamento!    

quarta-feira, setembro 10, 2014

Eleições 2014 e o reacionário interior de São Paulo



            Curioso pensar como o cenário político das eleições 2014 mudou após a morte de Eduardo Campos. A estabilidade de Dilma, a queda de Aécio Neves e o levante de Marina Silva. Afinal, quais são os motivos que levam os eleitores escolherem seus representantes? E por que o interior de São Paulo é tão reacionário, configurando-se como um dos locais de maior força dessa reviravolta abrupta? 

            Ao que me parece, simbolicamente no imaginário social, a morte do candidato à presidência representa uma metáfora do luto pelas mazelas cotidianas, oportunamente trabalhada discursivamente por aqueles que buscam a condução das massas. É a promessa de vida! Pois tudo, a partir de então, será diferente. O assassinato diário dos cidadãos pelo sucateamento dos serviços públicos e redução do Estado é abafado por falas fantasiosas, promessas vazias e sem sentido na atual conjuntura.

            Ignorância e contágio emocional caminham de mãos dadas. E já dizia Le Bon, pensador do final do século XIX e início do XX, muito relido em tempos atuais, “as massas se tornam burras”. Essa volatilidade dos eleitores, entre outras coisas, aponta para uma falta de consciência política, visão holística e da totalidade. É proposital: os rebanhos não conseguem transpor os limites do curral.

            O interior de São Paulo tem muito que amadurecer politicamente, pois ainda não rompemos as cercas do curral. Somos reacionários às transformações reais. Falamos de mudanças em esfera nacional e mantemos há mais de 20 anos a mesma gestão no estado de São Paulo. Uma incoerência, não? A suposta defesa da mudança e do novo é uma farsa e falácia, pois aqui, na maioria das vezes, nos posicionamos junto às forças hegemônicas. Olhemos para nosso cenário! Transferência do espaço urbano ao mercado imobiliário e especulativo, manutenção das antigas formas de reprodução do capital, inventivo a uma indústria obsoleta, políticas sociais e de cultura à deriva, etc.

            Convido o leitor e eleitor que acredita nessa promessa do novo fazer um exercício: pensar o que é esse novo e quais os caminhos efetivos para a mudança, pois não podemos ser incoerentes e rasos. Isso é descompromisso. Falar em pautas consensuais, como educação e saúde, é tão óbvio  como rezar uma missa com a paróquia cheia. Não sejamos ludibriados e tenhamos motivos claros e coerentes para votarmos, isso é um compromisso nosso enquanto cidadãos.  

quinta-feira, julho 24, 2014

O levante conservador: um problema ao multiculturalismo

            Três fatos, dentre inúmeros recorrentes nos últimos dias, podem nos exemplificar um levante conservador que estamos vivendo no país. Isso é um problema ao multiculturalismo e eu explico.
            Nessa semana um cara na academia disse, sem qualquer pudor social, que mulher deveria obedecer ao marido, dar-lhe sempre carinho sem reclamações e que o homem é a autoridade no lar, devendo ela apenas cuidar dos filhos, pois essa é sua obrigação “natural”. Acrescentou que feministas são chatas e mal amadas. Todo seu discurso estava atravessado de ignorância e rancor, desqualificando as mulheres como sujeitos morais. Para quem queira saber mais, até 1800 se explicava a mulher como o sexo invertido, inferior. Depois, passou-se a explicar a distinção dos sexos e dos gêneros, colocando-a presa no lar, no privado, enquanto os homens são educados para o público. Tudo isso, nada mais é que construções discursivas para exercício do poder e da dominação.
            Em 07 de julho foi aprovada uma lei que institui a leitura da bíblia diariamente em escolas públicas de Nova Odessa pelo legislativo local. Curiosamente, na mesma semana uma igreja em Sabará, Minas Gerais, foi invadida e depredada por evangélicos que alegaram serem contra o culto a santos. É uma nova colonização e imposição de valores, tal como quando os europeus vieram catequizar os índios e, praticamente, extinguiram sua/nossa cultura. Fez bem o prefeito em vetar, uma vez que o Estado é laico e não podemos acatar uma crença como hegemônica. 
            Esses dias um conhecido destilou todo seu preconceito numa rede social ao ler uma postagem na qual digo que a funkeira Valesca Popozuda é uma diva, pois para ele, a cantora é uma puta. Valesca aparece numa foto lendo Madame Bovary, de Flaubert, uma obra do século XIX que conta a história de uma mulher que, mesmo sonhadora, não se submete às imposições de uma moral hipócrita. Bem, mas ainda que ela fosse puta, que não é o caso, poderia sim ser diva. A divindade é um significado social.
            Tais fatos representam uma afronta ao multiculturalismo, que diz da coabitação de múltiplas culturas num mesmo lugar. E, em linhas gerais, cultura é um conjunto de práticas, crenças, valores, manifestações artísticas e intelectuais transmitidos entre gerações.  Não existe uma mais importante que a outra. Num mundo tão diverso como o nosso, as religiões, os modos de viver e as subjetividades de cada indivíduo devem ser respeitados e salvaguardados. Não faz sentido falar em alguém que deve submissão a outrem, nem em imposição de uma crença, tão pouco julgar aquele que não conhecemos. 

segunda-feira, abril 07, 2014

A expansão de um regime da sexualidade

                  Não tenho pra mim uma resposta clara, mas sinto que, de fato, estamos se não em um novo - o que Sérgio Carrara nos fala - mas num regime da sexualidade expandido daquele que Foucault nos apresenta em “A história da sexualidade I: A vontade de saber”.
            Não são apenas nos consultórios médicos, nem nos prostíbulos, tão pouco nos confessionários, que o puritanismo burguês têm posto as sexualidades ilegítimas. Hoje outros saberes e códigos compõem esse regime, no controle dos corpos e populações. As imagens e discursos de uma sociedade do espetáculo têm criado novas representações e patologias. Entramos numa nova ou modificada economia discursiva sobre o sexo e a sexualidade, em que as pessoas publicam imagens de seus corpos, constroem identidades atomizadas a partir das redes sociais, criam páginas para análise dos perfis, leia-se dos corpos, de sujeitos que participam dos aplicativos de relacionamento/sexo, questionam o abuso sexual sem sequer conceber o que é o abuso, falam da pedofilia e do abusador como novos focos de transtorno mental ou desvio à norma.
            Laqueur estava certo, a política, compreendida como disputa de poder, cria novas formas de construir o sujeito e as realidades sociais. “O sexo é situacional, explicável apenas dentro do contexto de luta sobre gênero e poder”.
            A sexualidade já não se encontra apenas confiscada pela família conjugal, ainda que esta ainda seja altamente reivindicada, haja vista as falas e pautas de campanhas fundamentalistas proferidas e multiplicadas por alguns legisladores e seus seguidores, mas também nas imagens e discursos que operam novos modelos de experiência da sexualidade no cotidiano.
            Até que ponto as críticas direcionadas ao comercial do governo do estado de São Paulo sobre o transporte metropolitano, em que falavam do "xaveco" nas linhas de trem e metrô, não estão carregadas de uma forjada moralidade? Se “xavecar” é significado como intenção de assédio sem consentimento, o que fazemos nas casas noturnas, nos bares e nos espaços de sociabilidade em geral?
            Posto isso, alinhado a Laqueur, penso que não haveria a possibilidade em falar de sexualidade, sexo e gênero, sem tratar de um projeto político que compreende tais constructos sociais de um regime em expansão. Parece-me que nessa sociedade do espetáculo, parte do capitalismo, em que as relações são mediadas pelas trocas e pelas imagens, estas últimas representam a mercadoria que comercializamos na vivência de nossa sexualidade.
            E como nos coloca Debord, “o mentiroso enganou a si mesmo”. Em nossa realidade atomizada, perdemos a noção da totalidade e criamos novas formas de controle e subjugação, marginalização e patologização dos sujeitos. E os discursos de autoridade, da medicina, do direito, da pastoral cristã e de novos saberes que se pretendem como hegemônicos, ainda são partes desse regime. Agora, multiplicados pelas imagens e redes sociais.