quarta-feira, outubro 28, 2015

“Frescáh no Círio”: a tríade resistência estética, linguística e moral de Leona Vingativa*

Imagem do clipe "Frescáh no Círio"
 Acervo virtual, autor desconhecido. 
Com irreverência criativa, Leona Vingativa e seus amigos, de Belém do Pará, fazem uma paródia do Círio de Nazaré por meio de um vídeo compartilhado no YouTube. Frescar, na linguagem popular, significa tirar sarro, zombar. Na presente interpretação, a sátira estrelada por jovens paraenses representa a tríade resistência estética, linguística e moral frente à hegemônica leitura do corpo e sexualidade na sociedade brasileira. É um contraponto artístico à leitura fundamentalista, puritana e classista operante em todo país desde sua colonização ibero-cristã.
         Tal resistência é observada desde as cenas, scripts e personagens apresentados no videoclipe. O cenário não compreende as paisagens dos grandes centros urbano-mercantis, nem mesmo a ostentação da propriedade privada e dos espaços de glamour das sociedades fashionistas e do espetáculo. O vídeo mostra, dentre outras coisas, as periferias de casas inacabadas, os equipamentos públicos de lazer fora do mercado de consumo e o despejo do esgoto, produção humana, nas bacias hidrográficas. Retrata sujeitos que não se adequam às expectativas e posturas disponíveis na cultura cristã, heteronormativa, machista e burguesa. Assim, os personagens reivindicam um lugar ao sol àqueles que estão marginalizados, junto à corda de uma das maiores manifestações religiosas do Brasil, considerando que a fé é um direito de todos. Essa é, certamente, a primeira ruptura estética, quando o ideal de belo não se restringe às elites.
    O clipe inicia com duas cenas deflagradoras da tentativa de instituição do fundamentalismo na cultura. A primeira apresenta o pastor e Deputado Federal Marco Feliciano solicitando o uso da força policial para inibir a demonstração de afeto homossexual num culto religioso. A segunda relaciona a transcrição de um versículo bíblico em paralelo ao retrato das religiões assimilacionistas, como a Espírita e a Umbanda, sempre perseguidas no Brasil. Esse embate entre as cenas reproduzidas e criadas no vídeo exemplifica o controle sobre os corpos exercido pelos dispositivos de poder nas sociedades ocidentais.
O vídeo, enquanto um campo de interlocução e ação, rompe com a desconstrução moral de crenças que não se enquadram na perspectiva monoteísta cristã, esta cristalizada historicamente em nossa cultura pelo uso da força e das instituições. A ironia do “Frescar o Círio” aponta novos sentidos e significados ao que é simbolizado coletivamente, como o gênero, o corpo e a sexualidade.
Leona, a diva do roteiro, ao invés de aparecer num carro conversível ou de luxo, sobe e samba num caminhão Ford da década de 1980. E, ao que parece, não se trata de uma opção pelo vintage, mas sim do que se tinha disponível. Na sequência da corda, momento em que se mistura erotismo, desordem e fé, os movimentos dessincronizados denotam a negação do erudito em detrimento ao popular. Revela as potencialidades e possibilidades do uso do corpo.
         A indumentária também chama a atenção.  Ao centro, a figura de Nossa Senhora de Nazaré, com manto e coroa alusivos à santidade, mas também usando cinto e calça collant, trazendo a humanidade de sujeitos históricos. As demais personagens vestem minissaia, top, vestido e bandana de tecidos e cores variadas, impactando numa concepção sagrada, essencializada e normatizada para ornamentação dos corpos. Outra contraposição estética, somada à dança erotizada e aos termos de cunho afetivo-sexual. E na música atestam: deixarão as barrocas chocadas.
Barroca, na gíria LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais), refere-se às mulheres velhas, segundo Aurélia – a dicionária da língua afiada. O uso de uma linguagem do gueto, de uma minoria política, além de dizer da escolha por termos que afirmam algumas identidades, neste caso, faz uma crítica ao conservadorismo seletivo, que julga moral e belo apenas um modelo estabelecido de script. Nesse sentido, a produção discursiva pela afirmação da multiplicidade de ser no mundo e pelas manifestações diversas da sexualidade é uma resistência linguística.
E nesse universo do possível e de neologismo, duas vezes saltam ao discurso as referências animalescas. Talvez as aproximações aos bichos primem por uma interpretação mais sincera de humanidade, fazendo frente à divisibilidade do ser humano, que lhe põe separado do meio ambiente, distingui corpo e alma e distancia conhecimento e prática. A provocação do clipe supera a ironia crítica, sejam os atores conscientes ou não, pois traz novas formas de conhecimento e legitimidades por meio de uma nova arte.

*Pequeno ensaio escrito para disciplina de Pós-Graduação "Conhecimento, compreensão e novas legitimidades" do DIVERSITAS USP