Imagem do clipe "Frescáh no Círio" Acervo virtual, autor desconhecido. |
Com irreverência criativa, Leona Vingativa e seus amigos, de Belém do
Pará, fazem uma paródia do Círio de Nazaré por meio de um vídeo compartilhado
no YouTube. Frescar, na linguagem
popular, significa tirar sarro, zombar. Na presente interpretação, a sátira
estrelada por jovens paraenses representa a tríade resistência estética,
linguística e moral frente à hegemônica leitura do corpo e sexualidade na
sociedade brasileira. É um contraponto artístico à leitura fundamentalista, puritana
e classista operante em todo país desde sua colonização ibero-cristã.
Tal
resistência é observada desde as cenas, scripts
e personagens apresentados no videoclipe. O cenário não compreende as paisagens
dos grandes centros urbano-mercantis, nem mesmo a ostentação da propriedade
privada e dos espaços de glamour das sociedades fashionistas e do espetáculo. O vídeo mostra, dentre outras coisas,
as periferias de casas inacabadas, os equipamentos públicos de lazer fora do
mercado de consumo e o despejo do esgoto, produção humana, nas bacias
hidrográficas. Retrata sujeitos que não se adequam às expectativas e posturas disponíveis
na cultura cristã, heteronormativa, machista e burguesa. Assim, os personagens reivindicam
um lugar ao sol àqueles que estão marginalizados, junto à corda de uma das
maiores manifestações religiosas do Brasil, considerando que a fé é um direito de
todos. Essa é, certamente, a primeira ruptura estética, quando o ideal de belo
não se restringe às elites.
O
clipe inicia com duas cenas deflagradoras da tentativa de instituição do
fundamentalismo na cultura. A primeira apresenta o pastor e Deputado Federal
Marco Feliciano solicitando o uso da força policial para inibir a demonstração
de afeto homossexual num culto religioso. A segunda relaciona a transcrição de
um versículo bíblico em paralelo ao retrato das religiões assimilacionistas,
como a Espírita e a Umbanda, sempre perseguidas no Brasil. Esse embate entre as
cenas reproduzidas e criadas no vídeo exemplifica o controle sobre os corpos
exercido pelos dispositivos de poder nas sociedades ocidentais.
O vídeo, enquanto um campo de interlocução
e ação, rompe com a desconstrução moral de crenças que não se enquadram na
perspectiva monoteísta cristã, esta cristalizada historicamente em nossa
cultura pelo uso da força e das instituições. A ironia do “Frescar o Círio” aponta
novos sentidos e significados ao que é simbolizado coletivamente, como o
gênero, o corpo e a sexualidade.
Leona, a diva do roteiro, ao
invés de aparecer num carro conversível ou de luxo, sobe e samba num caminhão
Ford da década de 1980. E, ao que parece, não se trata de uma opção pelo vintage, mas sim do que se tinha disponível.
Na sequência da corda, momento em que se mistura erotismo, desordem e fé, os movimentos
dessincronizados denotam a negação do erudito em detrimento ao popular. Revela
as potencialidades e possibilidades do uso do corpo.
A indumentária também chama a atenção. Ao centro, a figura de Nossa Senhora de
Nazaré, com manto e coroa alusivos à santidade, mas também usando cinto e
calça collant, trazendo a humanidade
de sujeitos históricos. As demais personagens vestem minissaia, top, vestido e
bandana de tecidos e cores variadas, impactando numa concepção sagrada,
essencializada e normatizada para ornamentação dos corpos. Outra contraposição
estética, somada à dança erotizada e aos termos de cunho afetivo-sexual. E na música atestam: deixarão as barrocas chocadas.
Barroca, na gíria LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais), refere-se às mulheres velhas, segundo
Aurélia – a dicionária da língua afiada. O uso de uma linguagem do gueto, de
uma minoria política, além de dizer da escolha por termos que afirmam algumas
identidades, neste caso, faz uma crítica ao conservadorismo seletivo, que julga
moral e belo apenas um modelo estabelecido de script. Nesse sentido, a produção discursiva pela afirmação da
multiplicidade de ser no mundo e pelas manifestações diversas da sexualidade é
uma resistência linguística.
E nesse universo do possível e
de neologismo, duas vezes saltam ao discurso as referências animalescas. Talvez
as aproximações aos bichos primem por uma interpretação mais sincera de
humanidade, fazendo frente à divisibilidade do ser humano, que lhe põe separado
do meio ambiente, distingui corpo e alma e distancia conhecimento e prática. A
provocação do clipe supera a ironia crítica, sejam os atores conscientes ou não,
pois traz novas formas de conhecimento e legitimidades por meio de uma nova
arte.
*Pequeno ensaio escrito para disciplina de Pós-Graduação "Conhecimento, compreensão e novas legitimidades" do DIVERSITAS USP
*Pequeno ensaio escrito para disciplina de Pós-Graduação "Conhecimento, compreensão e novas legitimidades" do DIVERSITAS USP