quinta-feira, outubro 16, 2014

Para quem contamos a história? Texto de Ingrid Soares para o menino João Donati

Texto de Ingrid Soares, compartilhado no II Encontro de Contadores de História - Ciranda, do Senac SP. 

"Ô, meu menino, vem cá.
Deixa eu limpar o teu corpo. Cospe longe esse papel cheio de ódio que te enfiaram na boca. Tua boca é pra beijar, pra sorrir, pra falar de amor.
Ei, vamos cuidar dessas pernas, que desse jeito, você não vai correr mundo. E o mundo é pra correr.
Vem cá, João, se afasta dessa gente que tem medo de liberdade.
Fica aqui, fica do meu lado que eu te protejo.
Pode ser, pode ser à vontade que você tem vontade de ser.
Desculpa por toda essa confusão, é que nessa mania que a gente tem de se levar a sério, um monte de gente saiu por aí pregando certezas e erradezas da vida. E a gente tão pequeno. E a gente tão mesquinho. E a gente se afastando de tudo o que realmente é importante.
Ai, que dor. Essa impotência sangra muito, menino, fragmenta os ossos, diminui.
Queria ter voz firme pra proclamar a alforria, pra mandar te deixarem solto, livre, bonito, em paz.
Mas eu nada.
Vou rezar uma ladainha e mastigar o conformismo.
Vou cantar baixinho pra ver se a tristeza se desinteressa de mim.
Vou falar de você. Vou levantar uma bandeira com o teu nome nas praças.
Veja só, meu pequeno, tem gente na tv dizendo que o que te fizeram tá é correto.
Que loucura essa tv, que loucura esse mundo.
Espero que no seu novo lugar, as coisas sejam diferentes, tá? Espero que nem haja tv. Espero que você possa amar. E ser. Eu acredito, é o que me resta.
Afetuosamente,
Eu.
(A João Donati, brutalmente assassinado aos 18 anos, por sentir atração sexual e afetiva por homens.
A João Donati, que poderia ser – e, de certa forma, é – meu filho.)"

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