sexta-feira, abril 01, 2011

Habilitação manicomial

No início de janeiro iniciei meu processo de habilitação mental, digo, de conquista da CNH – Carteira Nacional de Habilitação. Deve ser uma nova política pública de saúde mental aplicada pelo governo do estado de São Paulo.

Como nós sabemos, haja vista nosso cenário local, as autoridades são e estão sempre preocupadas com fraudes, ilegalidades, corrupção no espaço público. Aliás, isso é um orgulho nacional, a atenção com o bem estar do coletivo. E assim devem pensar nossos representantes que propuseram a reforma no sistema do DETRAN - Departamento Estadual de Trânsito de São Paulo. Não querem mais a compra de habilitação, mais uma prática do oportunismo barato de indivíduos que até podem acreditar no significado de cidadania, mas não o colocam em prática.

Pois bem, qualquer pessoa com o mínimo de censo crítico teria inúmeras interpretações sobre tal contexto de mais burocratização do serviço público. Porque convenhamos, preocupação com fraudes e falsificação de documentos e cartas de habilitação não é! Só seria isso se fosse uma política para inglês ver. Aumentaram o número de aulas, os procedimentos de avaliação, a centralidade de serviços e, obviamente, os custos. Ah! Esses, sim, elevaram-se em progressão geométrica. Para onde são canalizados, não sei. Para toda essa burocracia criada? Será?

Ah, não sejamos ingênuos. Os procedimentos de avaliação são severos, didáticos, aplicados por profissionais bem capacitados. Afinal, para dirigir é preciso estar habilitado aos moldes do que se coloca como saúde mental e psíquica.

Você enfrenta filas consideráveis, sistema ineficiente que funciona quando suas limitações não o impede de trabalhar e trabalhadores a beira de um surto por carregar as respostas dadas a todo esse desrespeito ao cidadão. Mas fique tranqüilo, o professor do CFC – Centro de Formação de Condutores te orientará a rezar. Já falo dele, por que antes você passa pelo psicotécnico.

Para ir até o psicotécnico, certifique-se como anda sua saúde mental e vá até um daqueles médicos que te dopam de anti-depressivos e tudo está bem. A medicalização da vida é tão confortável quanto a prática manicomial mesmo. Dane-se qualquer reflexão sobre nossas ações. Fica a dica. Será preciso!

Lá você encontrará uma profissional que fará comentários preconceituosos sobre sua origem, lerá suas respostas em vós alta para todos da sala, questionará sua inteligência e capacidade psíquica de modo que todos escutem. Fique calmo se você for tímido e tiver uma formação superior, pois pra você ela possivelmente dirá que é determinado, certeiro e independente, mas se não tiver um curso superior ela pode se sentir mais a vontade em questionar suas respostas. Bom, ela deve ser muito experiente e pós-graduada no assunto, porque só com um dos testes ela já te fala e faz tudo isso.

O próximo passo é esperar mais um tempo e iniciar as “aulas” no CFC. Aí você encontrará aquele professor que te falei. Ele é divertido, começa com as piadas desde os primeiros minutos de apontamentos. O humor é sua ferramenta para didática da aula. Admiro os professores que possuem esse dom. Novamente você será testado. Tudo bem que cada um carregue seus preconceitos para si, mas um educador não pode, em hipótese alguma, retroceder anos de lutas de movimentos que militam pelo respeito e dignidade. O tal educador faz comentários homofóbicos, revelando sua intolerância e incapacidade de lidar com o diferente. São inúmeras as piadas e brincadeiras sobre mulheres e associadas às relações de poder e gênero. Ele, assim como quase toda a turma, deve acreditar que isso seja apenas brincadeiras insignificantes.

Eu, sinceramente, gostaria que ele e os demais soubessem dos inúmeros casos de jovens adolescentes que se suicidam. Que a cada dois dias um homossexual é assassinado no Brasil. Foram 250 mortes registradas só em 2010. Mais de 1 milhão de mulheres são vítimas de violência doméstica no país, segundo o IBGE. 68% das vítimas sofrem lesões corporais, 57% são agredidas todos os dias e 70% dos agressores são seus maridos/companheiros/ex-companheiros (Sec. Políticas Públicas para as mulheres). De acordo com o Instituto Sangari foram quase 40 mil mortes registradas em dez anos. Isso significa mais de dez mortes por dia. Queria ainda que soubessem que são essas piadas e brincadeiras insignificantes que constroem e afirmam essa cultura machista perversa a toda humanidade.

Habilitar-me para dirigir tem sido uma experiência manicomial.

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