Curioso
tentarmos encontrar respostas e caminhos para uma mudança social. Se nem mesmo o homem, sujeito repleto de
subjetividades, poderia dar conta de certezas que o leve a destinos
vislumbrados num projeto de futuro, como poderíamos pensar em transformações
para um conjunto deles? Mulheres e homens compõem inúmeras realidades
compartilhadas em sociedade e cada qual possivelmente as enxerga de uma
maneira, pois o sujeito é histórico, cultural e social, fruto de uma produção
discursiva que constrói socialmente, contudo é também reflexo de suas escolhas
e ações particulares frente a esse social. Não há como qualquer individuo ser
igual ao outro. Assim, supomos encontrar a resposta, pois é através do outro
que nos entendemos e significamos. A mudança não é possível quando pensamos e a
objetivamos em alguém sozinho, é sempre na relação com outrem que podemos
mudar.
Por que às vezes temos a
idéia de que vivemos no caos? O aumento da violência urbana, o abandono da
educação, o esquecimento da cidadania, o distanciamento entre pais e filhos,
entre pares e amigos, a apatia com o sofrimento alheio, a banalização do mal, a
desestruturação das auto-estimas, a perda de caráter, o relativismo da
gentileza, a performática da vida, a procura por corpos ideais, etc. Tudo isso
parece alinhar-se uma lógica de busca por uma juventude que nos valha de
anestésico para a morte, quando, talvez, não acreditemos mais na vida. É como
Jurandir Freire Costa fala ao tratar da indiferença, em que nos esquivamos de
olhar para o outro, certamente acabamos por destruir aquilo que não temos
coragem de transformar.
Loïc Wacquant diz que o
distanciamento cada vez maior entre os sujeitos ricos e pobres, bem como o
crescente autocercamento das elites políticas, o afastamento das instituições
dominantes da sociedade, tudo isso alimenta a hostilidade e a desconfiança,
legitimando a ordem social, a autoridade e a repressão: a polícia. E o controle é a peça-chave para entendermos a
estabilidade e manutenção das coisas. Opressão, poder e competitividade estão
em jogo numa sociedade que não se questiona e não se enxerga. A mudança nesse
contexto parece limitada.
Para Jurandir a nova sociedade
global se tornou personagem de um mundo fantasma, vivemos num lugar que é
internacional e, ao mesmo tempo, fictício. E sem as raízes e pertencimento,
perdemos o sentido da história e do bem comum. No Brasil e em muitas partes do
globo, as classes dirigentes ignoram os desfavorecidos, eis a primeira
indiferença, que por sua vez pouco se importam com a vida das elites, segunda
indiferença. Em meio a isso, a burguesia é acometida pela ansiedade,
insegurança e sentimento de fracasso. Eleva-se o consumo de antidepressivos, as
consultas terapêuticas, os shopping
centers, a busca por respostas exotéricas, os gastos com produtos e
serviços que prometem a felicidade, essa é a terceira indiferença, das elites
para com elas mesmas. É a incapacidade
do olhar para outra coisa que não seja a si mesmo. O outro se perdeu nessa
lógica da indiferença e quando não temos o outro não significamos a nós mesmos.
Logo, não podemos mudar o que foge a nossa visão.
Wacquant acredita que houve uma
modernização da miséria, um novo regime de desigualdade e marginalidade urbana
que trilha novos rumos e toma outras formas. Qualquer que fosse o rótulo
utilizado para designar os marginalizados, ao que nos parece, estes não estão
mais isolados num território, etnia, raça, sexualidade. A marginalidade
apresenta outros sinais somado aos antigos, está em toda a cidade, em todos os
grupos e tribos. Frei Betto coloca que hoje, pior do que antigamente, na
sociedade em que vigora o individualismo, não mais falamos em marginalizados, e
sim em excluídos. Não há mais a esperança de retorno, os sujeitos nem contornam
o esperado, o modelo, estão postos para fora, no lugar da ausência. São
invisibilizados na realidade.
Diante disso outras
questões nos aparecem. O que está implícito nessas ações humanas? Como
constituímos nosso projeto de futuro para vivermos em civilização? Quais são as
possibilidades de ruptura nesse contexto? Será que é preciso mudar? Estamos
satisfeitos com o que temos construídos como humanidade? Se a racionalidade é
parte do que concebemos sobre nós mesmos, tais questionamentos já se legitimam
como uma pulsão do nosso existir. Esbocemos possíveis respostas para tanto.
Diversos pensadores e
intelectuais defendem que somos dominados e agimos pelos desejos. Nossa
mecânica configura-se através das pulsões por aquilo que almejamos. E se somos
seres sociais, certamente nossos desejos serão construções do social, produtos
das diversas histórias, culturas e ideologias. Assim, vivemos num processo em
que buscamos objetivar tais anseios. As relações entre indivíduo e o outro/cultura/mundo
se dão nessa interação complexa em que todos se constituem mutuamente. Jose
Leon Crochik, numa perspectiva da psicanálise, mostra como a constituição da
personalidade dos sujeitos em relação com a cultura produz preconceitos e
estereótipos, ou seja, significações do mundo. É como se uma economia reflexiva
legitimasse a idéia que temos das coisas como verdades que atendam nossas
expectativas. Jurandir Freire Costa fala de nossa devoção pelas palavras, as
quais supomos serem verdades daquilo que pretendem designar. Ainda que os seres
humanos se orientem pelo outro, pela cultura que o atravessa, sua pulsão de
vida e morte advém de si. Para Crochik o preconceito é uma reação à mudança
individual e social, é a eliminação do desconhecido e afirmação do conhecido.
Voltemos à impressão de vivermos no caos, o homem que busca a estabilidade e a
segurança, quando confrontado com as incertezas, certamente recorrerá ao que
está cristalizado, posto de certa forma como verdade. É o que lhe confortará.
Como, por exemplo, quando diante de uma explosão e visibilidade de múltiplas
manifestações de sexualidades, e da relativização de temas como gênero e
orientação sexual, muitos setores da sociedade firmam-se no fundamentalismo
religioso. Nossas práticas decorrem sempre desse movimento entre o eu e o
outro, numa busca de construção de si.
Assim, é nesse
interstício sujeito/mundo que vislumbramos a possibilidade de ruptura. Precisamos
considerar essa economia reflexiva e tentarmos transpô-la com idéias e
propostas de vida novas. A academia sozinha certamente não daria conta de
responder tais expectativas, contudo, como todos os múltiplos micro-espaços de
atuação do sujeito, ela é capaz de propor ensaios para colocarmos em cena. A
desconstrução proposta pela teoria queer
advém dessa perspectiva. Não se trata de um relativismo raso, mas de um
constante questionamento sobre a significação, classificação, categorização,
disciplinarização das coisas.
Já nos está claro que
não há como mudar alguém sem que seu entorno se transforme, contudo, também não
é possível alterar uma conjuntura sem que mudemos cada um de nós. A resposta
que nos parece óbvia, confunde-se com sua inexistência. A meu ver, mudar é preciso, independente da
nossa satisfação enquanto humanidade, pois esta associa-se a uma percepção que
é subjetiva. Mudar é necessário, pois segue a lógica de perseguirmos algo, de
sonharmos, de querermos a vida e não a morte. Mudar nos parece tão distante
porque, paradoxalmente, a mudança se inscreve no presente e no cotidiano, que
de tão próximos, não encontramos lugar para essa transformação que projetamos
no futuro.