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Eros também é
fantasia, devaneio, puro capricho da imaginação. Faz com que as pessoas gritem
e resistam à bala de borracha e gás lacrimogêneo, faz com que editemos fotos,
publiquemos coisas e queiramos mostrar tudo isso ao mesmo tempo. Produzimos as
imagens que queremos, pois tal Eros é alvo do Ego e de uma ferida narcísica que
nunca cicatriza.
Dessa forma perpassa
todas as práticas que exercemos nas ruas e em redes sociais, no público e no
privado. Não à toa os movimentos sociais
também são constituídos no plano da fantasia, sobretudo quando ganham força a
partir do facebook. Sendo assim, os movimentos não são apenas o que vemos de
fato, compreendem tanto a realidade concreta quanto a que criamos a partir de
nossa performance no mundo.
Apesar da inegável
contribuição para a democratização da informação e transformação na
comunicação, as redes sociais impactam em várias dimensões da consciência e da
vida, uma vez que contempla o imaginário. Há um conjunto de signos, símbolos e
sentidos em jogo compartilhados nos textos, mensagens e imagens, tudo a partir
de um clique que nunca é vazio. E não sendo vazio, é lugar
de significação.
Sendo assim, como as
redes sociais se relacionam com a realidade concreta? Qual seu impacto no
vivido e no cotidiano?
Além de visibilizar
causas e aproximar pessoas, elas cooptam o Eros e põe em exercício o poder.
Jurandir Freire Costa (1997), ao tratar da noção de violência e abuso de poder
no horizonte ético da cultura, fala das elites brasileiras e seu destino
sócio-individual. Uma vez que detêm a maior parte das riquezas e o comando dos
instrumentos que consagram normas e comportamentos – a exemplo as redes sociais
– servem, com seu capital cultural e intelectual, ao mercado e ao sistema
capitalista. Assim, o autor considera duas
idéias: a) o alheamento em relação ao outro e b) a irresponsabilidade sobre si.
Esse alheamento em
relação ao outro, aponta ele, pode gerar o desconhecimento do outro como
semelhante, desqualificando-o como ser moral. A indiferença anula quase
totalmente o outro em sua humanidade, assim ignora-o enquanto sujeito dotado de
direitos e desejos. Assim, os saqueadores, pichadores e os baderneiros não são
dignos de compreensão, nada mais são do que uma escória social a ser banida.
Não os enxergamos como parte de nós, produtos dessa relação assimétrica de
direitos. Ainda que se tenha criticado a ação fascista da Polícia Militar nos
diversos atos pelo Brasil, sua força é altamente reivindicada para esses ditos
marginais.
No modelo de
subjetivação e individualização das elites brasileiras, aponta Jurandir, os
pobres e miseráveis são cada vez menos reconhecidos como pessoas morais. Essas
elites não se preocupam em legitimar seus valores, já os têm como dado, como um
consenso imaginário. E esta convicção de certa forma é autentica. Assim, os
movimentos sociais devem ser como elas concebem, ordenados de maneira que não
contestem seus privilégios.
Contudo, as elites
são personagens cárceres de um mundo fantasma que elas mesmas criaram. Fechadas
em suas bolhas, dentro de shoppings, condomínios e até em universidades, não
conseguem enxergar o outro que destoa de seus valores. Gera-se aí a irresponsabilidade
sobre si, pois o ideal da boa vida burguesa paralisa
os indivíduos num estado de ansiedade permanente, responsável, em grande parte
pela incapacidade em olhar para outra coisa que não a si mesmo. Faz sentido,
portanto, ver como o compartilhamento de tanta informação gera um gigante posto
como adormecido. Essa dormência a base de antedepressivos é o retrato da
indiferença com o outro, quando não se olha para as pautas e reivindicações
emergentes do social, simplesmente reproduz-se a hegemonia de poder e a vontade
de agir pelo ego modelo.
Não é que os
movimentos não existam e que não hajam pessoas compromissadas com as causas
sociais, o gigante é apenas a materialidade da hegemonia. Tal gigante
reivindica muito o consenso, pois é autoritário e não suporta o dissenso e os
discursos marginais, quer colocá-los no ostracismo de onde não deveriam ter
saído. Os pequenos, ou as minorias por assim dizer, estão acordados há muito
tempo. O MPL (Movimento do Passe Livre)
há pelo menos oito anos, como dizem os militantes, tem organizado ações pela
mobilidade urbana e direito à cidade. Como podemos esquecer atos tão recentes
como os protestos “Fora Feliciano” que pipocaram por diversas capitais, cidades
interioranas e mundo a fora? Sobretudo articulados por movimentos como o LGBT,
o feminista e o Negro via redes sociais. E já diziam “A nossa luta é todo dia,
contra o racismo, o machismo e a homofobia”. Como pode hoje, nesse desenrolar
dos fatos, na organização de um ato contra o projeto de Lei da “Cura Gay”,
alguém questionar e contestar tal pauta como uma demanda social, alegando que o
momento é para causas de todos?
É o eco do
conservadorismo tentando incutir nos movimentos sua hegemonia. Daí fala-se de
tudo, da educação, da corrupção e até da família, tudo pelo exercício do poder.
Não são as ações coletivas que estão em jogo, mas o desejo individual em
publicizar um sujeito político inventado, conforme valores que a própria elite
enaltece.
Ser crítico,
participativo e politizado é um valor compartilhado para esse sujeito moral que
as elites concebem. O conhecimento e a política sempre estiveram associados às
classes dirigentes, sendo assim, as elites brasileiras contemporâneas não se
refutariam a consumi-los, ainda que de maneira forjada. Consome-se cultura,
educação e entretenimento, tudo banalidades para esse destino sócio-individual.
Assim, é como fala
Marilena Chauí, num vídeo postado no youtube, a violência opera sob o
preconceito de classe, raça, sexo, orientação sexual, mas só a criminalizamos
quando dissociada da marginalidade. Os comentários conservadores sobre os atos de
hoje mostram isso.
O Projeto de Lei 122,
que pretende a criminalização da homofobia é um bom exemplo desse
reconhecimento arbitrário da violência, sofrendo forte resistência das elites
políticas pressionadas pelas bancadas fundamentalistas. Mais do que contestar a
violência sob o sujeito, ele provoca o patriarcado, a opressão da família
burguesa e a religiosidade a favor do capital. Ele põe em cheque os privilégios
dos homens de família, por isso é polêmico.
Os movimentos de hoje
diz um pouco disso tudo. Além de denotarem as queixas sociais e o caos que
produzimos socialmente ao longo da história, revela o Eros cooptado numa
conjuntura neoliberal, fazendo da ação coletiva um desejo narcísico. Não que em
outros conflitos sociais isso não seja percebido, haja vista a formação das
lideranças, entretanto, as elites brasileiras parece ter feito disso uma
demasiada moção para vida e para prática cotidiana. Assim, a pulsão por estar
nas ruas está além de uma causa, ela diz desse valor socialmente construído por
um ideal de ego, é como Cantri (1941) nos pontua as motivações pessoais em
eleger valores ao participar de ações coletivas. Por isso a dificuldade em se
definir bandeiras num momento de tanta aderência. Da mesma forma que é
consumida a educação para o vestibular e a cultura para sobreposição do erudito
em detrimento ao popular, a militância é absorvida apenas para a performance,
uma prática fantasiosa de caráter egóico.
Num debate ocorrido
há pouco na Universidade de São Paulo, gostei de uma idéia dita pela professora
Sylvia Duarte Dantas (UNIFESP), de que estamos numa catarse social, como
experiência – ou suposta sensação - de libertação da opressão. Tais movimentos
são a explosão de diversas queixas, tanto dos oprimidos por um sistema
excludente, quanto daqueles que se sentem apartados do outro, quando numa ação
contraditória tentam alimentar sua imagem pessoal. Diz da incapacidade de boa
parte das autoridades públicas em responder as pautas sociais, uma vez que
presas às amarras de negociatas, distanciam-se da sociedade. Diz da dificuldade
de todos nós em olhar para o outro. E é isso que precisamos recuperar, a
proximidade com os nossos representantes e a atenção no outro. Sem isso, nessa
falácia toda, só reafirmaremos o que Jurandir supõe ser nossa estratégia
indiferente, destruir o que não temos coragem de transformar.
Como fazer isso? Ninguém tem a resposta. Ela será processada entre todos nós. Contudo, baseado no que tenho
escutado, destaco tais táticas:
1. Mais atenção dos
partidos políticos às pautas sociais. Essa resposta reacionária também
revela sua incapacidade em responder demandas da população;
2. A participação da
população em coletivos e partidos. - Participe, mesmo que julgue estes
corrompidos, pois se um coletivo achar por bem mudar a conjuntura, haverá a
transformação. E o sistema representativo é um modelo de gestão democrática;
3. A construção de uma
cultura política. - Informe-se mais, conheça seus
representantes, freqüente mais as casas legislativas ao seu alcance, da sua
cidade;
4. Recuar nesse momento, como fez o MPL,
para que não sejamos cooptados pelos discursos e forças hegemônicas;
5. Pensar em estratégias
para essa potência de Eros em subverter o que está posto como
opressivo, aproveitando-se dessa ruptura, mesmo que simbólica, de apatia social para construir o novo.
“Sem um esforço para conceber [o novo],
(...) dificilmente poderemos produzir o encantamento necessário à paixão
transformadora capaz de restituir à figura do próximo sua dignidade moral. O
caminho é longo e penoso. Mas navegar é preciso, e sem uma bússola na mão e um
sonho na cabeça nada temos, salvo a rotina do sexo, droga e credit
card”.
Jurandir Freire Costa
Referência:
COSTA, Jurandir Freire. A Ética Democrática e seus Inimigos. O lado privado da violência pública. Em: NASCIMENTO, Elimar Pinheiro do. Ética (seleção de textos). Rio de Janeiro/Brasília. Garamond/Codeplan, 1997.
Referência:
COSTA, Jurandir Freire. A Ética Democrática e seus Inimigos. O lado privado da violência pública. Em: NASCIMENTO, Elimar Pinheiro do. Ética (seleção de textos). Rio de Janeiro/Brasília. Garamond/Codeplan, 1997.