sexta-feira, junho 21, 2013

Eros e civilização, Texto III | Atos pelo Brasil

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           Eros também é fantasia, devaneio, puro capricho da imaginação. Faz com que as pessoas gritem e resistam à bala de borracha e gás lacrimogêneo, faz com que editemos fotos, publiquemos coisas e queiramos mostrar tudo isso ao mesmo tempo. Produzimos as imagens que queremos, pois tal Eros é alvo do Ego e de uma ferida narcísica que nunca cicatriza.
            Dessa forma perpassa todas as práticas que exercemos nas ruas e em redes sociais, no público e no privado.  Não à toa os movimentos sociais também são constituídos no plano da fantasia, sobretudo quando ganham força a partir do facebook. Sendo assim, os movimentos não são apenas o que vemos de fato, compreendem tanto a realidade concreta quanto a que criamos a partir de nossa performance no mundo.
          Apesar da inegável contribuição para a democratização da informação e transformação na comunicação, as redes sociais impactam em várias dimensões da consciência e da vida, uma vez que contempla o imaginário. Há um conjunto de signos, símbolos e sentidos em jogo compartilhados nos textos, mensagens e imagens, tudo a partir de um clique que nunca é vazio.  E não sendo vazio, é lugar de significação.
            Sendo assim, como as redes sociais se relacionam com a realidade concreta? Qual seu impacto no vivido e no cotidiano?
            Além de visibilizar causas e aproximar pessoas, elas cooptam o Eros e põe em exercício o poder. Jurandir Freire Costa (1997), ao tratar da noção de violência e abuso de poder no horizonte ético da cultura, fala das elites brasileiras e seu destino sócio-individual. Uma vez que detêm a maior parte das riquezas e o comando dos instrumentos que consagram normas e comportamentos – a exemplo as redes sociais – servem, com seu capital cultural e intelectual, ao mercado e ao sistema capitalista.  Assim, o autor considera duas idéias: a) o alheamento em relação ao outro e b) a irresponsabilidade sobre si.
            Esse alheamento em relação ao outro, aponta ele, pode gerar o desconhecimento do outro como semelhante, desqualificando-o como ser moral. A indiferença anula quase totalmente o outro em sua humanidade, assim ignora-o enquanto sujeito dotado de direitos e desejos. Assim, os saqueadores, pichadores e os baderneiros não são dignos de compreensão, nada mais são do que uma escória social a ser banida. Não os enxergamos como parte de nós, produtos dessa relação assimétrica de direitos. Ainda que se tenha criticado a ação fascista da Polícia Militar nos diversos atos pelo Brasil, sua força é altamente reivindicada para esses ditos marginais.
            No modelo de subjetivação e individualização das elites brasileiras, aponta Jurandir, os pobres e miseráveis são cada vez menos reconhecidos como pessoas morais. Essas elites não se preocupam em legitimar seus valores, já os têm como dado, como um consenso imaginário. E esta convicção de certa forma é autentica. Assim, os movimentos sociais devem ser como elas concebem, ordenados de maneira que não contestem seus privilégios.
            Contudo, as elites são personagens cárceres de um mundo fantasma que elas mesmas criaram. Fechadas em suas bolhas, dentro de shoppings, condomínios e até em universidades, não conseguem enxergar o outro que destoa de seus valores. Gera-se aí a irresponsabilidade sobre si, pois o ideal da boa vida burguesa paralisa os indivíduos num estado de ansiedade permanente, responsável, em grande parte pela incapacidade em olhar para outra coisa que não a si mesmo. Faz sentido, portanto, ver como o compartilhamento de tanta informação gera um gigante posto como adormecido. Essa dormência a base de antedepressivos é o retrato da indiferença com o outro, quando não se olha para as pautas e reivindicações emergentes do social, simplesmente reproduz-se a hegemonia de poder e a vontade de agir pelo ego modelo.
            Não é que os movimentos não existam e que não hajam pessoas compromissadas com as causas sociais, o gigante é apenas a materialidade da hegemonia. Tal gigante reivindica muito o consenso, pois é autoritário e não suporta o dissenso e os discursos marginais, quer colocá-los no ostracismo de onde não deveriam ter saído. Os pequenos, ou as minorias por assim dizer, estão acordados há muito tempo. O MPL (Movimento do Passe Livre) há pelo menos oito anos, como dizem os militantes, tem organizado ações pela mobilidade urbana e direito à cidade. Como podemos esquecer atos tão recentes como os protestos “Fora Feliciano” que pipocaram por diversas capitais, cidades interioranas e mundo a fora? Sobretudo articulados por movimentos como o LGBT, o feminista e o Negro via redes sociais. E já diziam “A nossa luta é todo dia, contra o racismo, o machismo e a homofobia”. Como pode hoje, nesse desenrolar dos fatos, na organização de um ato contra o projeto de Lei da “Cura Gay”, alguém questionar e contestar tal pauta como uma demanda social, alegando que o momento é para causas de todos?  
            É o eco do conservadorismo tentando incutir nos movimentos sua hegemonia. Daí fala-se de tudo, da educação, da corrupção e até da família, tudo pelo exercício do poder. Não são as ações coletivas que estão em jogo, mas o desejo individual em publicizar um sujeito político inventado, conforme valores que a própria elite enaltece.
            Ser crítico, participativo e politizado é um valor compartilhado para esse sujeito moral que as elites concebem. O conhecimento e a política sempre estiveram associados às classes dirigentes, sendo assim, as elites brasileiras contemporâneas não se refutariam a consumi-los, ainda que de maneira forjada. Consome-se cultura, educação e entretenimento, tudo banalidades para esse destino sócio-individual.
            Assim, é como fala Marilena Chauí, num vídeo postado no youtube, a violência opera sob o preconceito de classe, raça, sexo, orientação sexual, mas só a criminalizamos quando dissociada da marginalidade. Os comentários conservadores sobre os atos de hoje mostram isso.
            O Projeto de Lei 122, que pretende a criminalização da homofobia é um bom exemplo desse reconhecimento arbitrário da violência, sofrendo forte resistência das elites políticas pressionadas pelas bancadas fundamentalistas. Mais do que contestar a violência sob o sujeito, ele provoca o patriarcado, a opressão da família burguesa e a religiosidade a favor do capital. Ele põe em cheque os privilégios dos homens de família, por isso é polêmico.
            Os movimentos de hoje diz um pouco disso tudo. Além de denotarem as queixas sociais e o caos que produzimos socialmente ao longo da história, revela o Eros cooptado numa conjuntura neoliberal, fazendo da ação coletiva um desejo narcísico. Não que em outros conflitos sociais isso não seja percebido, haja vista a formação das lideranças, entretanto, as elites brasileiras parece ter feito disso uma demasiada moção para vida e para prática cotidiana. Assim, a pulsão por estar nas ruas está além de uma causa, ela diz desse valor socialmente construído por um ideal de ego, é como Cantri (1941) nos pontua as motivações pessoais em eleger valores ao participar de ações coletivas. Por isso a dificuldade em se definir bandeiras num momento de tanta aderência. Da mesma forma que é consumida a educação para o vestibular e a cultura para sobreposição do erudito em detrimento ao popular, a militância é absorvida apenas para a performance, uma prática fantasiosa de caráter egóico.
            Num debate ocorrido há pouco na Universidade de São Paulo, gostei de uma idéia dita pela professora Sylvia Duarte Dantas (UNIFESP), de que estamos numa catarse social, como experiência – ou suposta sensação - de libertação da opressão. Tais movimentos são a explosão de diversas queixas, tanto dos oprimidos por um sistema excludente, quanto daqueles que se sentem apartados do outro, quando numa ação contraditória tentam alimentar sua imagem pessoal. Diz da incapacidade de boa parte das autoridades públicas em responder as pautas sociais, uma vez que presas às amarras de negociatas, distanciam-se da sociedade. Diz da dificuldade de todos nós em olhar para o outro. E é isso que precisamos recuperar, a proximidade com os nossos representantes e a atenção no outro. Sem isso, nessa falácia toda, só reafirmaremos o que Jurandir supõe ser nossa estratégia indiferente, destruir o que não temos coragem de transformar.
             
Como fazer isso? Ninguém tem a resposta. Ela será processada entre todos nós. Contudo, baseado no que tenho escutado, destaco tais táticas: 
1.    Mais atenção dos partidos políticos às pautas sociais. Essa resposta reacionária também revela sua incapacidade em responder demandas da população;
2. A participação da população em coletivos e partidos. - Participe, mesmo que julgue estes corrompidos, pois se um coletivo achar por bem mudar a conjuntura, haverá a transformação. E o sistema representativo é um modelo de gestão democrática;
3. A construção de uma cultura política. - Informe-se mais, conheça seus representantes, freqüente mais as casas legislativas ao seu alcance, da sua cidade;
4. Recuar nesse momento, como fez o MPL, para que não sejamos cooptados pelos discursos e forças hegemônicas;
5. Pensar em estratégias para essa potência de Eros em subverter o que está posto como opressivo, aproveitando-se dessa ruptura, mesmo que simbólica, de apatia social para construir o novo.


“Sem um esforço para conceber [o novo], (...) dificilmente poderemos produzir o encantamento necessário à paixão transformadora capaz de restituir à figura do próximo sua dignidade moral. O caminho é longo e penoso. Mas navegar é preciso, e sem uma bússola na mão e um sonho na cabeça nada temos, salvo a rotina do sexo, droga e credit card”. Jurandir Freire Costa 

Referência:
COSTA, Jurandir Freire. A Ética Democrática e seus Inimigos. O lado privado da violência pública. Em: NASCIMENTO, Elimar Pinheiro do. Ética (seleção de textos). Rio de Janeiro/Brasília. Garamond/Codeplan, 1997. 


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