sexta-feira, junho 14, 2013

Eros e civilização: Entre a extensão do falo e a microfísica do poder no ato contra o aumento das passagens

Fotos: Moacyr Lopes Junior e Marlene Bergamo / Folhapress
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            Não são apenas os lixos incinerados nas ruas, os ônibus quebrados, os muros pichados, os gritos coletivos, as balas de borracha e as bombas de efeito moral e gás lacrimogêneo que farão parte dessa história que todos temos guardado e registrado desde as redes sociais e mídias ao nosso inconsciente social e individual. Há muito mais em processo no plano do simbólico e do subjetivo nessa ação coletiva ocorrida em São Paulo e outras cidades no último dia 13 de junho de 2013.
            Marcuse, um dos pensadores referência das revoltas de 1968, em sua interpretação de Freud, diz que vivemos na complexa e intrínseca relação entre pulsão de vida e morte, no choque entre Eros e Civilização. E para Freud a origem prímeva é o complexo de Édipo. O pai severo impõe os primeiros valores societais. Revoltados, munidos pelos instintos agressivos, o matamos, mas o amor nos gera o remorso para harmonizarmos as relações. Essa é a origem da culpa, que nos orienta a não vivermos no caos diante dos limites em sociedade. O pai projeta-se e transforma-se em instituições, nas religiões, nas relações, no Estado. Não há como amá-lo sem que antes desejemos sua morte.
            Não é que as pessoas nas ruas não queriam mais o Estado, os limites, as regras e as instituições. Talvez alguns até digam isso e chutem lixeiras, ateiem fogo em espaços públicos e quebrem vidros, mas isso diz além do ato em si. Eros é a libertação momentânea da ordem e do limite, é um gozo pontual que responde a constante normatização da vida. Tudo é parte de um processo. Constituímos-nos e constituímos nossas práticas dessa forma, entre ordem e desordem.
            Nesse sentido, objetivamente, pudemos ver como há amor em SP, mesmo quando a cidade anuncia toque de recolhida e vê-se sitiada num estado caótico. É a pulsão de vida, o amor e os sonhos que fazem com que as pessoas se mantenham nas ruas mesmo com tantas bombas ensurdecedoras alusivas à morte. É Eros em confronto com o medo, a indiferença e a apatia social.
            E nesse complexo desenrolar cotidiano, as instituições sociais mostram que estão aí e fazendo uso de suas forças. Eis que vemos a extensão do falo. O pai castrador sempre será uma constante em nossas vidas. O público é um campo em disputa e o Estado apresenta suas armas: helicópteros, tropa de choque, fuzis, bombas de efeito moral e de gás lacrimogêneo, carros, motos e caminhões equipados em que descem dezenas de homens, todos fardados, ordenados, fortes e bem treinados. Seguem em frota, performaticamente, contornando ruas, cruzando carros, atropelando pessoas, ostentando o poderil de quem se coloca como a ordem. Vãs tentativas de controlar o que não tem controle, pois a pulsão de vida preexiste à ordem, ao conflito e a morte.
            Assim, as ações policiais orquestradas por um governo que se vale de uma força arbitrária de ordenação das insatisfações conforme os interesses das elites só podem falhar. A opressão e violência trazem sentidos a todos aqueles presentes ou não nas ruas. Os sons, as imagens, os cheiros, tudo passa a compreender o olhar do sujeito para o outro. Daí, podemos vislumbrar a consciência política a partir do reconhecimento, significação e materialização dos antagonistas.
            Não podemos ser levianos e incoerentes ao pensar que as pessoas estão nas ruas apenas pelo aumento da tarifa do transporte público. Se nem mesmo os conflitos de fórum íntimo, individuais, dizem respeito a uma única queixa, como poderíamos supor que tantos sujeitos postos em marcha reivindicam a mesma coisa?
            Os movimentos sociais dizem de um projeto de futuro quando o presente não responde aos anseios e necessidades do coletivo ou da pessoa humana. Tais movimentos e suas práticas exemplificam a microfísica do poder que Foucault nos fala. O poder está em todos os sujeitos, relações e espaços. Da mesma forma que o Estado exerce sua força sobre os manifestantes, estes também abalam quem os oprime. O cenário desdobra-se em múltiplas cenas e dentre os diversos atores, todos parte de um mesmo enredo, cada um conta a história e age sobre ela de uma forma, não sendo possível responder a todas elas. Então, mesmo quem se pretende forte vê sua fragilidade no mundo.  E os movimentos, como o nome já sugere, não são estáticos e não se limitam às manifestações. O eco e a produção discursiva que se gera empoderam pessoas e transformam a realidade, mudam os sujeitos e toda conjuntura social. 

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