Dotado
de uma licença poética e audaciosa, esboço uma paródia da incrível e
revolucionária fábula de Rachel Carson, da obra Primavera Silenciosa.
Era
uma vez uma cidade no interior do Brasil onde tudo parecia estar em constante
harmonia. Os seres humanos e os animais
coabitavam um espaço rico e belo em natureza, um lugar mágico. A formação
geológica ensinava sobre a dimensão do tempo e espaço; os cursos d’água e suas
quedas aludiam à importância dos ciclos e potência da vida; as árvores e os
pássaros revelavam a beleza de pertencer e estar num lugar. Tudo isso compunha
uma paisagem cênica impar. Na cidade formava-se um vale, de onde - do alto - se
via o horizonte, o amanhecer e o anoitecer em sintonia com um cenário repleto
de riquezas biológicas e ecológicas de um país tropical.
Pelo
caminho, era possível ver nas gramíneas os orvalhos, sentir o cheiro da terra,
o frescor do clima e o barulho das águas. Para chegar à primeira cachoeira,
descia-se uma escada lapidada pelo homem, serpenteada pela vegetação e, lá em
baixo, encontrava-se uma gruta e um pequeno represamento natural. As crianças
brincavam na água, alguns se arriscavam, saltavam e pulavam, outros se
penduravam nos galhos e balançavam até se soltarem. Casais, amigos e famílias
faziam piqueniques aos finais de semana. Os viajantes que passavam por lá
ficavam encantados com o oásis de verão.
Às
vezes a neblina dificultava ver o horizonte, nada que tirasse o encanto e os
mistérios do lugar. Ao contrário, estimulava a atenção curiosa, remetia os
sonhos de infância e a admiração pela vida bucólica, tranquila e silenciosa
junto aos sons naturais.
Vários
fatos se sucederam naquele lugar. Certa
vez, um senhor, munido com pedaço de pau, se defrontou com uma cobra, domando-a
para sua segurança. Em dada ocasião, uma pessoa, desacreditada na vida,
jogou-se peral abaixo. Numa manhã, em que uma forte neblina pairava sobre o
local, um guarda ordenou que um meliante corresse o mais rápido que pudesse em
direção ao penhasco para que não morresse à bala e ninguém sabe seu fim.
Conta-se também que numa tarde de chuvas fortes um gado teria entrado no
córrego e sucumbido à velocidade da água, caindo de cima da maior cachoeira. No
passado, as mulheres iam lavar roupa naqueles arroios e as crianças,
acompanhadas de amigos e familiares, aprendiam a nadar nos pequenos
represamentos. Num entardecer viu-se uma senhora fazendo suas preces e dispondo
no curso d’água suas oferendas.
Os
dias seguiam como sempre, mamíferos (incluindo os seres humanos), répteis,
anfíbios, aves e insetos viviam e transitavam naquele lugar, próximos às
nascentes, aos arroios e córregos. Tudo
em equilíbrio no bioma com a maior biovidersidade do mundo, a Mata Atlântica.
Eis
que tudo começou a mudar, como se um feitiço encerrasse a magia daquele lugar.
Os animais começaram a ir embora, proliferaram espécies invasoras, infiltraram
pragas e multiplicaram os animais peçonhentos.
As
pessoas deixaram de ir para aquele lugar, deram as costas. Não mais o
enxergando, começaram a jogar todos os seus dejetos, descartando lixo e
entulho, despejando esgoto e até desovando corpos. O lugar foi se desfigurando,
não mais visto como aquele lugar colorido e vívido. Passou a ser visto como um
buraco, uma sobra urbana, cinza, pálida, suja e fétida. A única vida possível
notada passou a ser a marginal, da drogadição, da decomposição, da delinquência
e dos descartes.
Com
efeito, foram aparecendo novas doenças infectocontagiosas, virais e
respiratórias. Mais ainda as pessoas se
afastaram, presas e enfermas em suas casas, onde ilusoriamente encontravam a
segurança de um bem-estar.
O
mato foi crescendo, os grupos de turistas não passavam mais e no imaginário
social aquele lugar era cada vez mais perigoso e sujo. Não mais misterioso,
passou a ser suspeito. Até mesmo os livros que citavam esse lugar foram
esquecidos. Os desejos foram se
sobrepondo, a tonalidade da água modificando, os animais e espécimes vegetais
se extinguindo. Até o solo foi se desconfigurando, assoreando os cursos d’água,
erodindo a terra e dilacerando as fendas com a velocidade da água.
Não
foi nenhuma atividade mística ou bruxaria que condenou esse lugar, mas, sim, a
própria população que o devastou e – hoje- enxerga suas consequências. Essa
cidade existe, pode ser Americana, no interior de São Paulo, ou São Francisco
de Paula, no estado do Rio Grande do Sul. Não apenas essas cidades, mas tantas
outras Brasil afora. Cenários de um processo conflituoso de antropização do
meio natural.
*A presente fábula foi publicada na tese de doutorado "Consciência política e ambiente: a desproteção de parques municipais em Americana (SP) e São Francisco de Paula (RS)", defendida no Programa de Psicologia Social da USP. Para acessar a tese, clique aqui.
Um conto do hoje aqui.
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